Sempre tive habilidade
E se acaso era prendadaJá na minha mocidade
Ficava pois tão catita
Airosa toda enfeitada
Com os meus vestidos de chita
Fiz uma colcha aos quadrados
Pois tinha jeito p’rá rendaPaciente nos bordados
Tudo como deve ser
Nada há que eu não aprenda
Dei conta dos meus miolos
Mas se aprendi a fazer
Tapetes de Arraiolos
Pois se sou habilidosa
Até fiz um candeeiroE senti-me tão vaidosa
Ai que até me inchou o peito
Mas p’ra inventar dinheiro
Isso é que eu não tenho jeito
Com o fósforo já queimado
Montei uma caravelaE gostei do resultado
Comprei depois cavaletes
Dediquei-me às aguarelas
E fiz então brilharetes
E entreguei-me à concertina
Mas se a achava esganiçadaNem com tudo a gente atina
E ao depois só por ouvido
E se me dava prazer
Tocava uma guitarrada
P’ra entreter o meu marido
Punha a guitarra a gemer
E entretanto o falecido
Foi aprender a tocarMas só fazia alarido
Ai como ele desafinava
Julgá-lo não me compete
Mas se até arrepiava
Quando se punha a soprar
No bocal do seu trompete
E jamais se entendeu
Pena quando a estima baixaEra mais parvo que eu
Mas que cargas de trabalhos
Pôs-se então a tocar caixa
Deixou-me feita em frangalhos
Foi então que às escondidas
Mas só das portas p’ra dentroComecei a aprender
E dava as minhas fugidas
Pois se acaso me concentro
Fico logo a perceber
E aprendi a solfejar
No esplendor do meu talentoCom o valor das figuras
Nem conseguia parar
Em tão ágil andamento
Numa nobre exibição
E até me davam tonturas
Sem perder a pulsação
Depois fui p’ró clarinete
Ai como era virtuosaFazia cá um sainete
Não era só aparato
Punha-me até lacrimosa
E ao dar à música vida
Num piedoso vibrato
Ficava tão comovida
Aprendi mais instrumentos
Pois se acaso era dotadaPassei por grandes momentos
Que eu cá sempre fui briosa
E andava bem ensaiada
Lia a música na pauta
Mas se eu era maviosa
Sempre que tocava flauta
E o que mais me concretiza
Traz-me sempre algo de novoÉ ser também poetiza
No cantar do sentimento
Uma poetiza do povo
Que diz palavras ao vento
Tenho poemas diversos
E alguns estão inacabadosFaço quadras faço versos
Se tenho as rimas por filhas
Com os meus dotes inspirados
Faço pois também sextilhas
Cavo então como quem lavra
Basta-me encontrar um temaE escolho cada palavra
Se acaso lhe acho piada
Escrevo então o meu poema
E que seja pitoresco
Pois desato à gargalhada
Quando o poema é burlesco
Pode até não agradar
Mas se não somos perfeitosNão me custa confessar
Eu sempre fui o que pude
Posso ter muitos defeitos
Contudo sou realista
E a minha maior virtude
É ter pois alma de artista
ILUSTRAÇÃO/ARTE DE MIGUEL
MATOS
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